
Há poucos temas mais estimulantes para a ficção científica que a inteligência artificial. 2001 – uma Odisseia no Espaço e Eu, Robô são exemplos que vêm à mente. Blade Runner – o Caçador de Androides é outro. São variantes da mesma pergunta: pode a criatura superar o criador e voltar-se contra ele? Essa ideia, quase inútil dizer, tem ressonâncias tanto científicas como religiosas.
Adaptado para o cinema por Ridley Scott a partir de uma novela de Philip K. Dick (Do Androids Dream of Electric Sheep?) Blade Runner não foi um extraordinário sucesso de bilheteria nem de crítica logo de cara. Transformou-se em cult, e clássico da sci-fi, em especial a partir do lançamento das versões do diretor (directors cut) em VHS e depois em DVD. Nessas, Scott livra-se de concessões comerciais que enfraqueciam seu filme, em especial o desfecho, um happy end imposto pela produção. Fazendo a obra voltar ao leito inquieto em que havia sido concebida, devolvia seu gume crítico e senso de mistério.
O final tornou-se perturbador – teria o espectador sido enganado até aquele momento a respeito da verdadeira identidade do caçador de androides Rick Deckard (Harrison Ford)? Quais são as astúcias envolvidas na manipulação da inteligência artificial? Seríamos todos marionetes, cujos movimentos dependem de algum demiurgo imperceptível?
Já se vê que, além de tudo, Blane Runner vincula-se a uma meditação sobre a política e nada tem de datado. Talvez nem de futurístico. A opacidade do poder é outro tema permanente, e não apenas da ficção científica.
Villeneuve: ‘tive toda liberdade, não posso culpar ninguém’
Em 1981, Ridley Scott já tinha no currículo Os Duelistas e Alien, o Oitavo Passageiro. Sua livre adaptação de Philip K. Dick – Do Androids Dream of Electric Sheep? -, que resultou em Blade Runner, o Caçador de Androides, custou US$ 28 milhões, numa época em que os orçamentos milionários começavam a virar norma em Hollywood. A expectativa de um mega êxito frustrou-se, mas, em compensação, algo se passou. O filme deu origem a um culto. A visão decadente do futuro de Los Angeles, segundo Scott, seduziu legiões. Em 1992, a versão do diretor finalmente obteve o pleno reconhecimento.
Existe toda uma bibliografia sobre os bastidores de Blade Runner. Harrison Ford não entendia o conceito, vivia às turras com o diretor e, para completar, Ford – Han Solo!, um notório ladies man – não se bicava com Sean Young, que fazia a replicante. Odiavam-se. Contra tudo isso, ou pode ser que por tudo isso, criou-se o mito do filme. Exatamente 36 anos depois, surge Blade Runner 2049. O original passava-se em Los Angeles, 2019. Agora, 30 anos depois, um novo blade runner está caçando androides na cidade. Caçar não é bem o termo. Ele os aposenta. Nesse futuro ainda mais decadente, sucederam-se as revoltas de replicantes. De cara, K/Ryan Gosling é mostrado em ação. Tensão, violência.
Aposentado o replicante, a missão complica-se com a descoberta de uma caixa. Nela está a pista para o mistério do novo filme. Há uma criança especial, um milagre. Foi parida por uma androide, filha de um humano. Villeneuve – “Quando me propuseram o filme, minha primeira reação foi dizer não. Gosto tanto do original… Mas justamente por gostar tanto, não poderia deixar que outro f… com o que virou tão importante no imaginário coletivo. E disse sim.” A história atraiu-o, e muito. O tema do criador e da criatura, que ele chama de “tema de Frankenstein”. “Mas não teria aceitado, se não me assegurassem toda liberdade. Fiz o filme que queria. Sorry, mas se não estivesse satisfeito não poderia culpar ninguém.”
A Chegada, no ano passado, foi a primeira ficção científica de Denis Villeneuve.
“Sempre gostei muito do gênero. Pertenço a uma geração que via fantasias futuristas para tentar entender o mundo. 2001 (de Stanley Kubrick) é um dos filmes da minha vida. Mas eu não encontrava o meu viés, a história que queria contar. A Chegada marcou esse comprometimento.” E Blade Runner 2049? “Não sei se você estará de acordo com o que vou dizer, mas esse filme engloba todos os que fiz antes – Incêndios, O Homem Duplicado, Sicário, A Chegada. É um filme sobre lembranças, duplos, poder, linguagem e comunicação.” O tema do criador e da criatura? “É visceral. Possui dimensão mítica, bíblica. O anterior já tinha. O replicante cravava o prego na própria mão. O sacrifício permeia os dois filmes. O que vem para liderar, para libertar.”
Villeneuve admite que tomou muitas liberdades com o conceito visual de Ridley Scott. Acha que foi mais fiel ao score. “Nunca vi alguém que, gostando de Blade Runner, não reverenciasse a trilha de Vangelis, incluindo a faixa One More Kiss, Dear, pela New American Orchestra. Com Johann Johansson e Han Zimmer, procuramos uma sonoridade grandiosa, majestosa, mas nada disso faria sentido sem o essencial. A melancolia. Para mim é o tema de Blade Runner 2049. Não falo da melancolia somente como tema musical, mas como conceito.” Androides sonham com carneiros elétricos? As memórias são reais ou implantadas? Esse tema da memória está sempre presente em Philip K. Dick – O Vingador do Futuro. Agora – o unicórnio de papel sugeria que Deckard/Ford era androide? O cavalo de madeira com data, pelo contrário, humaniza K? O final em aberto fazia do filme anterior umas meditação sobre o poder (leia abaixo). O novo final – olha o spoiler – atualiza essa reflexão para o estado do mundo em 2017. E o vilão, Wallace? “Não o vejo como vilão”, diz Jared Leto. “Há nele uma convulsão. O criador que sabe que fracassou. Tentei acalmar sua tensão interior. Ficou ainda mais terrível.”
Ryan Gosling e Denis Villeneuve conseguiram: novo ‘Blade Runner’ é ótimo
Em entrevista, pelo telefone – estava em Berlim, justamente para promover o lançamento de Blade Runner 2049 -, o diretor Denis Villeneuve confirmou o que havia dito na Comic-con de San Diego. Perguntaram-lhe, na ocasião, por que aceitar um projeto como o ‘rebbot’ – a sequência – da cultuada fantasia científica de Hollywood, de 1981. “Gosto muito do original, e só aceitei para evitar que outro pegasse o material para ‘fuckd-up’ (f…) com ele.” Villeneuve conta que não planejou dizer aquilo. “Saiu espontaneamente. Veio do coração.”
O tão aguardado novo Blade Runner estreia nesta semana – quinta-feira, 5 – nos cinemas brasileiros. Nos EUA, a estreia será na sexta, 6. Quando conversou com Villeneuve, o repórter havia visto apenas um ‘footage’ de 25 minutos do filme, com cenas – cronológicas – que davam uma ideia da trama e dos personagens. O filme foi visto – inteiro. São 2h40 de duração. Na despedida, o diretor havia dito – “Espero não decepcioná-lo.” Não decepcionou, como fez o próprio Ridley Scott com a nova versão de Alien, Covenant. Scott tem crédito como produtor de Blade Runner 2017. Quando falava de evitar que estragassem o filme, Villeneuve pensava nele? “Estou aqui quieto, você é que está falando.” Mas o riso dele, do outro lado da linha, entregava. Villeneuve também não gostou de Alien – Covenant. Está feliz com seu Blade Runner.
No Rio, também em conversa com o repórter, no dia seguinte à sua apresentação no Rock in Rio, Jared Leto, que faz o misterioso Niander Wallace, disse que foi como realizar um sonho. “Sempre gostei de Blade Runner. E agora faço parte dessa história.” Há grande expectativa pelo resultado financeiro do filme. Há 30 e tantos anos – 36 -, o Blade Runner de Scott fracassou na bilheteria. Mas virou cult – o reconhecimento de público só começou a vir quando estreou a versão do diretor, com cenas adicionais. Desde a época, a dúvida persiste – Deckard, o blade runner, caçador de androides, é, ele próprio, um replicante? A questão agora é outra – K/Ryan Gosling, o novo blade runner, é humano? Novas questões realimentam – reinventam? – o mistério. Blade Runner! Villeneuve conseguiu.
Trilha de Blade Runner é tão visionária quanto todo o longa
O músico grego Vangelis, que hoje tem 74 anos, já era uma ícone quando 1982 chegou trazendo o convite para que ele desse vida sonora a Blade Runner. Um ano antes, Vangelis havia feito a trilha das trilhas para Carruagens de Fogo, vencendo com ela o Oscar de 1981. Blade Runner o desafiava agora em outras frentes, muito mais alinhado à estética de suas aventuras à frente da banda de rock progressivo chamada Aphrodites Child, formada na Paris de 1968, quando ele deixou a Grécia e morou por lá, do que com os estudos de música clássica da juventude.
Vangelis parece ter analisado o filme compulsivamente até criar temas impressionantemente ligados ao tempo em que tudo acontece. Não seria demais dizer que outra trilha menos cuidadosa não teria colocado o longa de Ridley Scott no mesmo patamar.
Reveja a cena de Main Titles, por exemplo. Vangelis não cria o fundo para a cena em que o personagem de Harrison Ford analise a foto de um replicante depois de acessar um computador. Ele a complementa. Seus sons “acontecem” como as imagens. É tudo muito casado.
O que fica de mais pop da trilha, indiscutivelmente, é Love Theme, uma composição para saxofone e os sintetizadores visionários de Vangelis. A paixão tecnicamente impossível entre um caçador de androide, Rick Deckard (Ford), e uma replicante ganha uma melodia redentora, profunda e ao mesmo tempo sombria, como todo o filme se apresenta. A história musical de Blade Runner fez tanto sucesso que um segundo lançamento mais caprichado veio em 1994, e, treze anos depois, em 2007, a compilação mais completa de todas.