Embora seja um filme de época – uma versão intimista, desmistificadora, da chamada “maior história de todos os tempos” -, a Maria Madalena de Garth Davis, magnificamente interpretada por Rooney Mara, não poderia ser mais contemporânea na sua angústia, e insatisfação. De acordo com a tradição judaica de seu tempo, o irmão mais velho, que substitui o velho pai, estabelece que ela deverá se casar e encher de filhos um viúvo. Tal é o papel que a tradição lhe atribui, mas Maria Madalena não quer isso – não aceita. É o que basta para ser considerada endemoniada.
O tratamento de choque não resolve o caso, e Maria Madalena torna-se inconveniente. Uma vergonha para a família. Outro irmão pede licença para chamar o “rabino”. Ele entra no aposento. Ao espectador, é dado ver sua sandália, ouvir sua voz. “Não existe demônio nesse corpo.” E não existe mesmo. A insatisfação de Maria Madalena é de outra ordem. A simples voz desse homem, sua calma, terão um efeito apaziguador para os tormentos da mulher. Ela vai abandonar a família, os seus. Vai segui-lo pelas estradas poeirentas da Judeia. Formará parte de seus apóstolos, mas, como mulher, será malvista dentro do próprio grupo.
Muita gente há de estranhar, discordar. Afinal, o ano passado foi, para todos os efeitos, no Oscar, o de La La Land e Moonlight – Sob a Luz do Luar. Tinham suas qualidades, mas o melhor filme daquela seleção era outro, o Lion de Garth Davis. Um ano depois, ei-lo de volta, e dando a sua particular interpretação sobre a Paixão de Cristo. Os incidentes são todos aqueles que o cinema já mostrou antes, e o espectador conhece. Mas, então, por que tudo parece tão diferente? É o filtro da história. O olhar de Maria Madalena. Quando encontra Maria, a mãe do filho de Deus entende tudo, rapidamente. “Você o ama”, diz. “Deve-se preparar para perdê-lo.” É uma experiência e tanto entregar-se a essas imagens, à intensidade dessas emoções. O Evangelho, de novo, mas, agora, da mulher.
‘Maria Madalena’ resgata a imagem manchada da figura mítica
A imagem de Maria Madalena mais conhecida no mundo é a da prostituta. Mas não há nada que diga isso nos evangelhos, e a Igreja Católica finalmente lhe dedicou um dia, declarando-a “apóstolo para os apóstolos”, em 2016. A Maria Madalena prostituta teria sido uma criação do papa Gregório, no século 7.º. É dessa premissa que parte Maria Madalena, que estreia nesta quinta-feira, dia 15, primeiro filme sobre a misteriosa figura, dirigido por Garth Davis (Lion – Uma Jornada para Casa, indicado para seis Oscar).
O diretor australiano disse não temer a polêmica. “Acho mais controverso que a história não tenha sido contada até hoje. Vai haver controvérsia, claro. Mas só posso ter confiança de que uma celebração de amor e perdão vale a pena.”
Tanto Rooney Mara, que interpreta o papel-título, quanto Joaquin Phoenix, que faz Jesus Cristo, afirmaram ter hesitado em aceitar a tarefa. “Fiquei com muito medo”, contou a atriz. “Pensei: ‘Meu Deus, será que realmente quero fazer isso?’. Mas tinha muita vontade de trabalhar com Garth novamente e sabia que ele faria um filme bonito, íntegro, autêntico e verdadeiro.”
Joaquin Phoenix começou a ler o roteiro, desistiu e, sob insistência do seu agente, resolveu tentar de novo. “Achei muito emocionante e percebi algo que não tinha notado da primeira vez. Era uma nova perspectiva sobre esse movimento que não tinha sido explorada, e isso me pareceu interessante. Conversei com Garth Davis, ele falou sobre projeção astral e decidi que tinha de trabalhar com ele. Não sei explicar por quê.”
Mara, que foi criada católica, mas hoje não segue a religião, ficou surpresa ao saber que Maria Madalena não era prostituta como sempre lhe ensinaram. “Para mim é chocante. Maria foi parte essencial dessa jornada, foi escolhida para ser testemunha de Jesus. Estava lá quando ele foi crucificado, estava lá quando ressuscitou, e ainda assim é conhecida como prostituta, enquanto há igrejas no mundo todo com o nome de Pedro, Paulo e outros discípulos. As pessoas rezam para eles todos os dias, e Maria é uma p…”
Para contar essa história sobre a qual se sabe tão pouco, foram consultados padres, pastores e rabinos, além de pesquisadores de todas as religiões. Davis tinha como objetivo criar um mundo que parecesse o nosso. “Queria que as pessoas se identificassem com os personagens, que eles fossem humanos e não estivessem afastados de nós”, disse.
Sua grande inspiração foi Malala Yousafzai, que foi atacada pelo Taleban por defender o direito de meninas como ela de ir à escola no Paquistão e que venceu o Nobel da Paz por sua luta. “Ela mostra como nossa atitude deveria ser na vida”, disse o diretor. “Malala perdoou o Taleban, o que achei incrível. Agradeceu a seu pai por tratá-la como pessoa e não como mulher ou filha. Ela fala em respeitar os outros como seres humanos, o que é muito corajoso. Achei o mesmo amor e respeito no roteiro, que para mim pareceu muito contemporâneo e atual.”
Por isso, para Rooney Mara, não é preciso ser religioso ou mesmo acreditar em Deus para apreciar Maria Madalena. “Fiquei preocupada, mas um ateu me disse que amou”, disse a atriz. “Eu não sou mais católica, mas respeito quem é e respeito que seja importante para outros. Me considero uma pessoa espiritual e acredito que não é preciso nem ser espiritual para tirar algo do filme.”