
Zuza Homem de Mello se foi. O mais importante pesquisador de música do País, escritor, jornalista, contrabaixista e técnico de som, estava com 87 anos e morreu enquanto dormia em seu apartamento, no bairro de Pinheiros, em São Paulo.
A causa da morte revelada pela família foi infarto agudo do miocárdio. Antes de se deitar na noite de sábado, ele brindou à vida e aos projetos com a mulher Ercília e foi dormir feliz. Em razão da quarentena, a família pede compreensão ao informar que fará um velório e um enterro restritos, apesar das centenas de amigos que gostariam de se despedir.
Zuza havia finalizado na última terça-feira (29) uma biografia sobre João Gilberto, um projeto que o emocionava só de contar. Já havia feito um perfil sobre o violonista baiano, mas decidiu refazer os escritos, ir mais fundo na pesquisa, entrevistar mais pessoas e expandir a história. Ao falar sobre suas audições do álbum Amoroso, que João lançou em 1977, dizia que não conseguia ouvi-lo sem ir às lágrimas. E só de contar, chorava mais uma vez.
Zuza Homem de Mello, a quem Elis Regina gostava de chamar apenas José Eduardo, seus primeiros nomes, deixou o Brasil nos anos 1950 para estudar música na Juilliard School, em Nova York, assim que os pais entenderam que não valia a pena insistir para que ele seguisse outro caminho. A música já havia tomado o garoto. “Ok, percebemos que você tem trabalhado com música”, disseram depois que ele chegou em casa às 2h15 da manhã pela décima quinta vez com o instrumento. “Se é assim, prepare-se. Você vai estudar.”
A música não apenas definiu seus mais de 60 anos seguintes como também foi definida por ele. Zuza fazia audições em casa, ao lado da mulher Ercília, todas as noites. Sentava-se na poltrona, escolhia um LP e ficavam ali, degustando arranjos e gravações de Charlie Parker, Miles Davis e Duke Ellington, seu grande ídolo. Dos mais atuantes mestres no ensino musical, Zuza tinha uma frase que levava para a vida: “Ensinar as pessoas a aprender a ouvir.” Para ele, ouvir bem uma música, com tudo o que ela tinha a oferecer, era um ato que poderia salvar um dia, uma história, uma vida.
Sua temporada em Nova York nos anos 50 o havia colocado no lugar certo e no tempo ideal. Duke Ellington, Thelonious Monk, John Coltrane, Ella Fitzgerald, Billie Holliday, ele pode ver todos atuarem ao vivo, em clubes de Nova York. Ao voltar ao Brasil, seguiu na música, mas não mais como instrumentista tocando contrabaixo pelos bares da noite.
Agora, lançava-se como técnico de som, mas com um pensamento de captar também a alma dos programas e das plateias em um momento único da TV Record, em produções como O Fino da Bossa, Jovem Guarda e Bossaudade. Dentre seus livros referencias, estão A Era dos Festivais – Uma Parábola, de 2003; Eis Aqui os Bossa Nova, de 2008; Copacabana, de 2017; e, em dois volumes, A Canção no Tempo, com Jairo Severiano.
Um filme fica como registro do quanto o respeito a Zuza era poderoso, dentro e fora do país. Concebido por Ercília Lobo, com direção de Janaína Dalri, coordenação de conteúdo do próprio Zuza e realização do Canal Curta!, o documentário Zuza Homem de Jazz, de 90 minutos, o mostra em ação e como coadjuvante principal de uma vida de serviços à música. Busca seu passado nos Estados Unidos e encontra velhos amigos do jazz, como Bob Dorough, Gary Giddins, Steve Ross, Eric Comstock, Wynton Marsalis e Maria Schneider.
Em 2018, uma matéria do Estadão feita para anunciar o documentário dava espaço a artistas que o conheciam e que diziam sobre ele essas frases: “Zuza é das grandes figuras do meu Brasil. Eu o visitava em Sampa pra conversar e ouvir música e ele me mostrava tudo. É um conhecedor da música, apaixonado por jazz e íntimo da MPB. E que homem elegante, educado, civilizado!”, Caetano Veloso.
“É estaca guardiã, solitária e feliz diante da preservação e respeito a nossa música, nossos músicos, nossos cantores e cantoras, compositores, arranhadores, cantadores de repentes, tocadores de pife, de sanfona, de tarol, de prato e faca raspada”, Egberto Gismonti. “Zuza, sempre atento aos movimentos musicais antes mesmo que eles tivessem reconhecimento do público e da mídia. É um farejador craque”, Roberto Menescal.
“Um dos maiores gentlemen que conheci, das testemunhas mais presentes e atentas na história. Zuza é zuzu de bom!”, Nelson Motta. “Invejo no Zuza a quantidade de grandes músicos e cantores, brasileiros e internacionais, que ele viu em cena e com quem se relacionou. Por sorte para nós, ele a transforma suas histórias em livros e assim podemos, vicariamente, vivê-las também”, Ruy Castro. “Um país cujo canto é respeitado até no exterior, precisa de homens munidos de melos, porque sem uma crítica rigorosa e Zuzalina, a panaceia se instala em desmelodias na estrutura do homem”, Tom Zé.
Amigos, colegas e admiradores lamentam a morte de Zuza Homem de Mello
Mais importante pesquisador de música do País, Zuza Homem de Mello morreu neste domingo, 4, aos 87 anos, em sua casa, em São Paulo, enquanto dormia. Escritor, jornalista, contrabaixista e técnico de som, Zuza deixa uma obra que elevou a percepção da música brasileira no exterior e tornou possível a compreensão do jazz no Brasil.
Ele havia finalizado na última terça-feira, 29, uma biografia sobre João Gilberto. Zuza tinha uma frase que levava para a vida: “Ensinar as pessoas a aprender a ouvir.”
Amigos, colegas e artistas se manistestaram nas redes sociais, em uma última homenagem a Zuza Homem de Mello.
Como escrever a primeira matéria que Zuza não vai ler?
É difícil escrever algo sobre Zuza Homem de Mello ou qualquer assunto ligado ao jazz, ao samba ou à bossa nova sabendo que ele não estará lá com o jornal aberto, sentado na poltrona da sala ao lado do toca discos para ler tudo cuidadosamente ao lado de Ercília. Depois, se gostasse do que leu pelo texto ou pelo tema, ia ao computador escrever ao próprio repórter com o editor em cópia para espalhar até onde podia o quanto havia degustado a matéria e da importância que ela tinha para que as pessoas soubessem mais de música. Ele não precisava de mais nada.
Aos 87 anos, era respeitado por Wynton Marsalis, havia produzido shows de Elis Regina e participado da evolução tecnológica da TV a partir dos especiais da Record dos anos 1960. Roberto Carlos o chamava para entrevistá-lo, Gil mandava parabéns por vídeo no dia de seu aniversário e toda a história da música moderna a partir do samba-canção passava por ele. Ainda assim, agia, falava, recebia e se despedia de qualquer ser humano ao lado com uma generosidade desconcertante.
Há muitos recortes para se justificar a falta que esse homem fará a partir da manhã deste domingo, dia 4 de outubro. A família perde seu carinho, seu sorriso, sua doçura e tudo o que só cada um deles, sua mulher, seus filhos e seus netos, podem ou não quantificar. Os curadores perdem uma referência de bússola na escolha de line ups estupendos para montar festivais. Os radialistas se despedem de um arquivo de experiências. Os biógrafos não terão mais uma biblioteca viva de lembranças cristalinas e fidedignas.
Institutos sérios como Itaú Cultural, Moreira Salles e Sesc não contam mais com o pé direito da estrutura de seus projetos mais sólidos. Clássicos jornais como este Estadão é desfalcado do colunista de suas investidas mais grandiosas, como os especiais de Tom Jobim, Dorival Caymmi e Vinicius de Morais que tiveram textos com sua assinatura. E alguns jornalistas, e aqui preciso me incluir em primeira pessoa, algo que Zuza jamais faria, deixam de contar com um amigo leal, um mestre, alguém que capaz de fazê-lo inventar uma matéria apenas para “ligar pro Zuza”.
E cada ligação era uma vida. Se Ella Fitzgerald seria lembrada por alguma efeméride mesmo irregular, eu ligava pro Zuza. “Ella é incrível. Veja suas artimanhas usando na voz técnicas do trompete”, ele dizia. Se havia uma agenda qualquer de um grupo tocando temas de Duke Ellington, ligue pro Zuza. “Duke, para mim, o maior. Um homem que reunia o compositor, o arranjador e o instrumentista.
Não há similar no mundo.” Ao fazer uma biografia de Elis Regina, comece por Zuza: “Vou te mostrar uma entrevista inédita que fiz com ela para a Rádio Joven Pan, em que conta de como gostava da voz de Chet Baker.” Se o assunto era biografias, fale com Zuza: “Sabe, a gente precisa parar de pesquisar em algum momento e ouvir os artistas. É preciso se emocionar com eles antes de escrever sobre eles.”
Em nosso último encontro pessoal, antes da pandemia, fomos a um restaurante ao lado de sua casa. Zuza me contou sobre o livro que iria expandir sobre João Gilberto e eu quis saber dele qual, enfim, o grande álbum de João. Vi seus olhos brilharem como se fosse um garoto de 16 anos ao começar a me falar de Amoroso.
Ele chorou falando de um disco lançado em 1977 que já havia escutado milhares de vezes. Ao mesmo tempo que o passado vivia tão fortemente em suas memórias, Zuza e Ercília eram vistos em shows de novos artistas de jazz e de música brasileira o tempo todo antes que o mundo nos retraísse. E ele se empolgava com gente nova, como Livia Nestrovski, com a mesma intensidade que trazia as memórias dos anos 50 e 60 para lembrar de suas descobertas durante os anos em que viveu em Nova York entre shows de Thelonious Monk e John Coltrane.
Não por acaso, e para terminar como Zuza gostava de fazer, atendo-se à exatidão dos detalhes, um dos álbum mais transformadores de sua vida foi Brilliant Corners, que o pianista Monk lançou em 1957 com o saxofonista Sonny Rollins e o trompetista Clark Terry, além de Max Roach na bateria, Paul Chambers no contrabaixo e Ernie Henry no sax alto. “Lembre-se de Oscar Pettiford também no baixo em algumas faixas”, pareço ouvi-lo aqui. Sim, claro, Pettiford em algumas faixas. A sonoridade, entendo agora, explicava sua essência. Em Brilliant Corners está o peso do passado, o frescor do futuro e, sobretudo, um capacidade extasiante de se sentir o presente que seria levada por mestre Zuza até os seus últimos dias.