
Especialistas ouvidos pelo RD defendem audiência de custódia contra a tese de que veio para soltar presos. No ano passado 3.871 pessoas tiveram as prisões preventivas decretadas no ABC após audiências, segundo a Secretaria de Administração Penitenciária, média de 10 prisões/dia. Mas a Pasta não informa quantos presos receberam o direito de responder em liberdade. A questão é polêmica e envolve a fama de que esse instrumento, recente no Código de Processo Penal, teria objetivo de soltar presos, sugerindo, ainda, que aumenta a impunidade.
Segundo o artigo 310 do Código de Processo Penal, a audiência de custódia é um instrumento a ser usado no caso de prisões em flagrante, ou seja, em caso em que a prisão ocorreu no prazo de até 24 horas após o crime. A polícia tem um dia para apresentar o preso ao juiz para a audiência e ele estará acompanhado de um advogado.
Na audiência, o magistrado pode relaxar a prisão caso ela tenha ocorrido de forma ilegal, converter a prisão em flagrante em preventiva ou ainda conceder a liberdade provisória, com ou sem o pagamento de fiança. Essa liberdade não significa que o acusado não responderá pelo crime, apenas que ele aguardará seu julgamento em liberdade. Situações, como criminosos reincidentes, crimes violentos e uso de arma de fogo, são situações que ensejam a prisão.
O movimento contra as audiências de custódia aumentou nos últimos anos e o deputado federal e ex-vice-prefeito de São Bernardo, Marcelo Lima (Solidariedade), tem firme a posição para derrubar o instrumento jurídico, e trabalha o tema mesmo antes de assumir o mandato. Lima usou o tema na campanha e logo depois de eleito passou já a articular em Brasília um projeto neste sentido. “A audiência faz com que o policial, uma autoridade que vai às ruas, arrisca a vida para prender um sujeito que está numa moto roubando celular no ponto de ônibus e, em menos de 24 horas nós estamos olhando aquele sujeito sendo liberado numa audiência de custódia”, disse o parlamentar no primeiro discurso que fez após empossado, em janeiro.

A audiência de custódia já estava no código de CPP e foi regulamentada em 2019. Segundo David Pimentel Barbosa de Siena, delegado de polícia, professor de Direito Penal e coordenador do Observatório de Segurança Pública da USCS (Universidade Municipal de São Caetano do Sul), quando foi implementada na década passada a norma foi alvo de muitas críticas.
Siena conta que de início, com a liberação dos presos na audiência de custódia, o número de liberados chamou atenção, mas hoje a grande maioria dos que passam pela audiência tem a prisão preventiva decretada ou é liberada com restrições, como o uso de tornozeleira eletrônica ou alguma outra medida cautelar. “Eu diria que 80% dos que passam pela audiência ficam presos. Esse número mostra uma realidade muito diferente do censo comum que se construiu contra a audiência de custódia”, explica.
O juiz, segundo Siena, segue o critério de que se há provas contra o preso e ele já tem uma vida pregressa, na maioria dos casos a decisão é pela prisão preventiva. “O juiz acaba chancelando. Quem vai responder em liberdade é aquele que foi preso por crimes culposos (sem intenção), situações em que mesmo antes já não ocorria a prisão preventiva. Eu vejo que politizaram demais essa questão da audiência de custódia quando na verdade ela veio para formalizar o que já existia”, diz. O juiz, afirma, sempre teve a possibilidade de relaxar um flagrante. “Ele não avalia o crime, julga se a prisão em flagrante foi legítima e se houve violação de direitos”, completa.
O presidente da OAB de Santo André, Leonardo Dominiqueli, também diz que é falsa a tese de que a audiência de custódia estimula a impunidade. Para o advogado, é um instrumento novo que veio para facilitar a prisão em flagrante, não para soltar todo mundo. É solto o preso que é primário (não teve outras passagens pela polícia), que tem residência fixa e que cometeu crimes menores . “O juiz não vai soltar um traficante. A audiência é para verificar se houve algum direito desrespeitado. Quem diz que a audiência gera impunidade são pessoas que não têm conhecimento técnico. As situações em que o preso vai responder em liberdade já eram aquelas em que o preso conseguiria esse direito mais tarde, sairia de qualquer jeito, mas enquanto ficou preso onerou o Estado”, comenta.
Virtual
A pandemia da covid-19 acelerou um processo tecnológico que instituiu as audiências de custódia de forma virtual. Hoje, mesmo com o arrefecimento da emergência de saúde, grande parte das audiências continua sendo realizada online. Na opinião do delegado e professor da USCS e do presidente da OAB andreense, a situação é ruim para o preso e o sistema carcerário.
Para Siena, o legislador foi muito feliz na elaboração da lei que trata da audiência. O preso, diz, deve ser levado à presença do juiz que vai não apenas ouvir, mas olhar todo o contexto. “Um exemplo foi de um homem preso por tráfico de drogas, que foi levado ao juiz, viu toda a situação do acusado, que era morador de rua e era usuário de drogas, não um traficante. Essa observação não poderia ser feita numa audiência online. E em situações em que o preso foi pressionado para confessar, se apanhou da polícia? Se ele participa da audiência na delegacia ele não vai dizer que apanhou, mas poderia dizer no fórum diante do juiz, aí trata-se de uma prisão ilegal. Em Santo André a maioria das audiências de custódia é virtual”, critica.
Para o professor David de Siena, essa situação da audiência pela internet não é a ideal. “As audiências deveriam ser feitas presencialmente. Acredito que a audiência virtual desvirtua o espírito da lei, traz um efeito diferente e mitiga a análise do juiz. Lógico que o preso que apanhou não vai falar que isso aconteceu estando dentro de uma delegacia falando com o juiz pelo computador. Mas não é em toda a cidade que isso acontece, depende do diretor de cada fórum. Na Capital, por exemplo, praticamente todas as audiências são presenciais”, completa.