
Mário de Andrade e Rodrigo Melo Franco de Andrade cultivaram uma amizade fraterna e duradoura. “Rodrigo exerceu o papel de irmão na vida de Mário, pois o ajudou a garantir uma estrutura financeira para realizar seu trabalho. Ele sabia o quão importante Mário era para a cultura brasileira”, comenta Maria de Andrade.
Para organizar o livro Correspondência Anotada, a pesquisadora se apoiou em arquivos públicos e também no livro Cartas de Trabalho, organizado pela museóloga Lélia Coelho Frota e publicado em 1985. Ali estão reunidas as cartas trocadas entre Mário e Rodrigo entre 1936 e 1945.
O que difere aquele volume do que é publicado agora é o ineditismo de algumas cartas. O motivo é que Mário determinou um sigilo na correspondência recebida de muitos amigos e que não poderia ser tornada pública antes dos 50 anos da morte dele, ocorrida em 1945.
ALEIJADINHO
Escrita em 1928, a primeira carta é assinada por Rodrigo que, como editor-chefe de O Jornal, encomenda a Mário um artigo sobre Aleijadinho para uma edição especial sobre Minas Gerais. “Sob o olhar atual, dois pontos se destacam”, comenta Maria. “Rodrigo convidou só autores modernistas para colaborar nesse projeto, o que reforça a importância daquele movimento artístico. E o outro detalhe é o destaque à obra de Aleijadinho como principal representante da arte mineira.”
Como um todo, a obra epistolar é fundamental para se descobrir os meandros da construção do patrimônio artístico e cultural brasileiro, especialmente quando eles revelam as dificuldades no trabalho de pesquisa. E há fatos engraçados – em novembro de 1937, Mário relatou a viagem que fez a Bertioga, onde foi inspecionar um forte. “Estou todo envolvido em talco pra ver se me seco de três dias e meio da maior umidade, vivi nágua”, escreveu ele que, além da chuva intermitente, passou uma noite com sede. “Na Bertioga, não havia água mineral, só perfumarias, guaranás e coisas que me embebedam.” Logo em seguida, ele relata a alegria proporcionada por uma aguardente.
Maria considera essencial a carta que Rodrigo escreveu em 2 de maio de 1936, convidando o escritor para integrar um livro em homenagem ao poeta Manuel Bandeira (1886-1968). “Foi ali que Rodrigo comunicou que assumiria o cargo de diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Sphan, que se tornaria Iphan com a troca de Serviço para Instituto”, conta. “A partir dali, os dois amigos dividem o trabalho que realizariam para a preservação do patrimônio artístico nacional. Sem dúvida, um marco.”
Mário de Andrade valoriza o patrimônio
Um de seus versos mais conhecidos (“Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta”) serve como definidor dos múltiplos talentos de Mário de Andrade (1893-1945) – prosador, escreveu romances e contos fiel ao espírito modernista; crítico, apontou caminhos para outros artistas de áreas diversas; pesquisador, viajou pelo Brasil buscando traços folclóricos e musicais de todas as regiões, desconhecidos dos grandes centros.
Mário foi também um destacado poeta e principalmente um incansável missivista, trocando uma farta correspondência com artistas de várias áreas. Muitas dessas cartas já foram publicadas em livros, mas, mesmo com essa profusão de títulos, é essencial o lançamento agora de Correspondência Anotada (Todavia), com a conversa epistolar entre o autor de Macunaíma e Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898-1969), editor, escritor e articulador, o primeiro e mais longevo presidente do Iphan, diretor da chamada “fase heroica” do instituto.
A troca de ideias entre eles atingiu alto nível porque Mário, quando dirigiu o Departamento de Cultura de São Paulo (1935 a 1938), foi autor do Anteprojeto do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, órgão do qual se tornaria o mais ilustre funcionário (inicialmente no cargo de superintendente da Regional de São Paulo e depois como seu pesquisador). “Foi esse trabalho que o aproximou de Rodrigo e, juntos, realizaram uma pesquisa profunda sobre a questão do patrimônio”, observa a editora, pesquisadora e professora Maria Graciema de Andrade, neta de Rodrigo e organizadora do livro. “Pela correspondência, é possível notar que foi um trabalho de formiguinha ao longo dos anos e nem é possível dimensionar o esforço de cada um.”
São cercas de 300 cartas trocadas entre 1928 e 1945, ano da morte de Mário. “Nesse período, eles viajaram para lugares com situação precária, o que rendeu casos engraçados, relatados na correspondência”, diz Maria.