ABC - quarta-feira , 3 de julho de 2024

Transporte por mototáxi é irregular em todo ABC e oferece risco ao consumidor

Transporte por app em motocicletas segue em operação livre, apesar de não regulamentado (Foto: Banco de Dados)

A morte da jovem Yaritza Vitória do Nascimento, de 19 anos, num acidente em que estava na garupa de um mototáxi, dia 24 de junho, em Santo André, chamou a atenção para a atividade comercial não regulamentada no ABC, mas em operação livre pelas plataformas de transporte por app na região. Em algumas cidades o transporte por app em motocicletas é considerado infração e os agentes de trânsito estão orientados a autuar.

O acidente fatal aconteceu na avenida Capitão Mário Toledo de Camargo, entre a Vila Luzita e o Centro da cidade. Segundo apuração do RD, o condutor da motocicleta tentou passar entre um ônibus, que estava na faixa exclusiva e um veículo, mas calculou mal a distância e colidiu com o coletivo. O motociclista se feriu e está internado, já a jovem foi atropelada pelo ônibus e morreu no local.

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A 99 Táxis é a plataforma pela qual o motociclista foi contratado para a corrida. Em nota, a companhia informa ter disponibilizado pessoal para para acolhimento e a disponibilização de informações sobre o acionamento do seguro e do auxílio psicológico, para a família da jovem e o motociclista, internado no Centro Hospitalar Municipal.

Nem a 99 e nem a Uber, que também disponibiliza transporte com motocicletas, comentaram sobre a atividade ou sobre quantos mototaxistas trabalham para essas plataformas no ABC. As prefeituras dizem que o transporte por mototáxi por aplicativo ou não é uma prática irregular e, em algumas cidades, os agentes estão orientados a autuar se flagrar a prática da atividade sob duas rodas. Já há até demandas judiciais, ajuizadas por Prefeitura da região contra as plataformas de transporte.

Diadema destaca em nota enviada ao RD que se essa prática for flagrada por agentes de trânsito estes podem autuar o motociclista por transporte irregular de passageiros. “Não existe regulamentação municipal para o transporte de passageiros de mototaxistas em Diadema. Não sendo serviço legalizado, o embarque e desembarque não é permitido e os agentes de trânsito/transporte são orientados a fazer esse tipo de fiscalização. Caso seja identificado o transporte de mototáxi os agentes podem autuar o condutor por transporte remunerado irregular, conforme prevê o Código Brasileiro de Trânsito”, diz a Prefeitura que não possui nenhuma autuação do gênero até o momento.

Regulamentação regional

Em Santo André, onde aconteceu o trágico acidente, a Prefeitura informa que nenhum tipo de transporte de passageiros por aplicativo, com moto ou carro, está regulamentado na cidade. São Caetano diz apenas que o serviço não é regulamentado, enquanto Ribeirão Pires conta que aguarda regulamentação regional sobre transporte por aplicativos para amparar também a sua fiscalização.

São Bernardo já recorreu à Justiça para decidir sobre a atividade que, no município, não está autorizada. “A legislação que regulamenta o transporte prevê apenas veículos de passeio. Quaisquer outros meios de transporte por aplicativo, portanto, são considerados proibidos. Como não existe no âmbito municipal uma legislação que regulamente o mototáxi, uma vez que a prática está em desacordo com os preceitos da lei nº 6.382/2014, a Prefeitura já notificou as empresas para se abster da prática. Atualmente, a discussão está no Judiciário e o serviço opera graças a uma liminar obtida na Justiça”, explica a Prefeitura.

Segundo o Infosiga (Sistema de Informações Gerencias de Sinistros no Trânsito), gerenciado pelo Detran (Departamento Estadual de Trânsito), os acidentes com moto são os que mais matam no ABC. Segundo o sistema, a região em 2024 teve o maio mais letal dos últimos oito anos no trânsito local. Foram 24 mortos e 32% das vítimas estavam em motocicletas.

Custo social

Para Luiz Carlos Mantovani Néspoli, superintendente da ANTP (Associação Nacional dos Transportes Públicos), entidade que se dedica a pesquisas na área, a regulação sobre os serviços de transporte cabe ao município, portanto a atividade de mototáxi contratada ou não pelo aplicativo, se não regulamentada, é irregular. A entidade é contra o transporte remunerado de passageiros em motocicletas, por considerar  que o tipo de veículo oferece risco ao contratante.

Yaritza vítima fatal de acidente de trânsito com motociclista contratado por aplicativo (Foto: Rede Social)

Para a ANTP, a regulação do transporte remunerado é alçada dos prefeitos. Não há lei federal que atenda esse problema. “As resoluções do Contran [Conselho Nacional de Trânsito] têm normas para os veículos e condutores, mas não para o transporte remunerado”, explica Néspoli ao dizer que as cidades devem se entender na regulação. “Não adianta um prefeito não regulamentar e outro autorizar”, adverte.

SUS é quem vai pagar a conta

Para Néspoli,  as cidades devem ficar atenta aos custos financeiros e sociais da permissão do transporte remunerado com motocicletas. Um prefeito pode autorizar, pensar no bem social, ao oferecer um meio de transporte mais barato, mas é o SUS (Sistema Único de Saúde) que reúne União, Estado e prefeituras, que vai pagar a conta.

“Os custos, no caso de um acidente, começam com os socorristas dos bombeiros ou do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência), depois com a polícia, tem as despesas hospitalares e se houver sequelas, geralmente essa reabilitação leva muito tempo. Além disso tem o custo social da perda laboral, do quanto tempo esse paciente fica sem trabalhar e há casos de arrimos de família, então é um problema social muito grande”, analisa.

Néspoli diz que a condição do passageiro de uma moto é muito diferente de quem contratou um motorista de aplicativo de carro. “Os acidentes de moto acontecem porque é um modal de muito risco e porque o motociclista dirige de forma inadequada. No carro, o passageiro só precisa sentar e por o cinto, na moto o passageiro deve ter um treinamento também, porque se o motociclista inclina o corpo, o garupa tem que de acompanhar o movimento, se não faz isso pode ocasionar uma queda. Tem ainda o fator pressa. A população tem pressa e o motociclista ignora os riscos, portanto vemos que o transporte remunerado em motos não é a solução para o transporte público, pois gera até mais custos para o poder público. Nós não recomendamos pelo risco que essa prática oferece”, completa.

‘Motociclistas devem ser treinados em primeiros socorros’

Para o enfermeiro e professor do Centro Universitário da FMABC (Faculdade de Medicina do ABC), Renan Thomas, que trabalhou por 12 anos no Samu, em São Caetano e Santo André, inclusive com motolâncias, a pressão que a atividade de delivery ou de transporte de passageiros é grande sobre o motociclista. “A cada dia ele acelera mais para reverter aqueles segundos em dinheiro. A auto-confiança cresce e ele se torna imprudente. Quando tem um passageiro tem que ser alguém que saiba andar. Se a pessoa não contribui com a estabilidade ela vira um peso atrás do motociclista e ainda têm pessoas que levam bolsas, tudo isso desequilibra. Além disso, tem o motorista que disputa espaço com o motociclista e falta muita educação no trânsito”, analisa.

Para Thomas, que já socorreu inúmeras vítimas com politraumatismos que estavam em motocicletas, na maioria dos casos as vítimas fraturam os membros superiores e inferiores e, mesmo com uso do capacete não são raros traumas de crânio. “O equipamento de proteção minimiza os danos, mas tem equipamentos de má qualidade e o mau uso, como o condutor que não afivela o capacete”, alerta.

O enfermeiro reforça o custo para o poder público que é alto diante do tempo que o trabalhador acidentado fica afastado. “Se quebrar um fêmur, o afastamento é de dois a três meses e precisa de reabilitação. Fora o custo na área de saúde, quanto custa para a economia esse trabalhador parado esse tempo todo?”, indaga. “Em geral é um autônomo e quem vai atendê-lo é o SUS e enquanto está parado nem recebe nada”, completa.

Thomas diz que é preciso formação, não apenas para a atividade remunerada com motos, mas até para o socorro. “Sou a favor de se criarem regulamentos e ter treinamento para atuar dentro da lei e com segurança, mas o que vemos hoje é que a Uber e 99 fazem suas leis próprias. Para trabalhar com moto tem que ter pré-requisitos até de primeiros socorros. Quando um acidente acontece para um monte de motociclistas e eles têm de saber o que fazer até o socorro chegar. Saber conter um sangramento, saber tirar um capacete sem lesionar a coluna, saber explicar para o atendente do serviço de emergência qual é a gravidade. Isso é importantíssimo e pode salvar a vida do acidentado, mas ninguém discute isso”, ressalta o professor.

‘Atividade não depende de regulação municipal’

Enquanto as prefeituras e a ANTP sustentam que a atividade de mototáxi, contratada por aplicativo ou não, é irregular sem a regulação municipal, a Amobitec (Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia) diz o contrário, que a atividade está amparada em lei federal e os municípios não podem interferir.

Por meio de nota, a Amobitec afirma que o transporte de passageiros por motocicletas intermediado por plataformas digitais é uma atividade privada, legal, regida pela Política Nacional de Mobilidade Urbana, e sustentada pela lei federal n° 13.640. Desta forma, os aplicativos têm autorização legal para atuar em todo o território nacional. Assim, no âmbito local, os municípios não podem proibir a atividade, cabe às prefeituras apenas a possibilidade de criar regulamentações para definir regras operacionais e de fiscalização, por exemplo.

Ainda, segundo a Amobitec, o serviço oferecido pelas empresas associadas não enquadra na classificação de mototáxi, que se trata de serviço público, sobre o qual incidem outras regras. Pela legislação federal, o serviço de transporte de passageiros pode ser feito de carro e moto, pois não é especificado o tipo de modal. “O Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu em 2019 pela impossibilidade de proibição, por se tratar de atividade legítima, exercida de livre iniciativa e autorizada pela Constituição”, diz a nota da Amobitec.

A associação diz, ainda, que as empresas que representa adotam medidas de segurança. Adotam camadas de segurança adicionais às previstas em lei para mitigar riscos e evitar ocorrências. Inicialmente, para utilizarem o aplicativo, motociclistas e passageiros têm de ser cadastrados nas plataformas, com seus dados pessoais, documentos e foto. ”No caso dos condutores, é necessário não ter antecedentes criminais e, além de ter a habilitação exigida para conduzir moto, o motorista precisa ter a documentação do veículo em dia para poder circular, entre outras exigências. Além disso, são disponibilizados conteúdos sobre direção segura em plataformas online e no próprio aplicativo para os motociclistas”, responde.

Ainda de acordo com a Amobitec mais de 3,3 mil das 5.568 cidades brasileiras são atendidas legalmente pelo transporte de passageiros por motocicleta intermediado por aplicativos, que promovem economia para o usuário e oportunidade de ganhos para motociclistas.

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